Quando a Água Levou o Último Cigarro
Sobre rituais que afundam, silêncios que flutuam, e o estranho recomeço de respirar sem fumaça.
Faz um ano que não fumo.
Não por força. Nem por promessa.
A água levou.
Era manhã de enchente, o céu desabando sem pedir licença nas telhas cansadas, e eu ali, parado, vendo a casa ser comida pelas bordas como se a vida inteira fosse um cigarro se apagando devagar na beira da pia.
A fumaça já não subia. O cinzeiro já não fazia sentido. Ficou tudo encharcado.
O vício, os móveis, a desculpa.
A fumaça me consolava, é verdade.
Era uma espécie de abraço quente que me tirava aos poucos de mim,
com carinho de quem não exige respostas.
Um afeto lento. Uma companhia muda.
Mas também me encurtava.
Me dobrava por dentro como quem dobra uma carta sem coragem de enviar.
Um passo por vez. Sem pressa. Me secando.
E eu deixava. Porque doía menos do que olhar pra frente.
Mas a água veio antes.
E no susto, me deixou limpo.
No começo, achei que era só perda.
Que sem o ritual, sem o cheiro, sem aquele torpor leve nos lábios,
tudo desabaria junto com a estante.
Mas o que desabou não foi a casa.
Foi o tempo.
Um tempo outro.
Sem cinza. Sem fumaça.
Um silêncio esquisito que eu não reconhecia,
e que, aos poucos, aprendi a morar.
Ainda sonho com fumaça.
Às vezes ela me visita no meio da madrugada,
se enrola no meu sono,
e eu quase escuto o estalo do isqueiro acendendo a escuridão.
Acordo com o gesto entre os dedos.
O corpo lembra antes da cabeça.
Mas passa.
E fica só o ar.
E o ar, quando a gente aceita,
tem gosto de recomeço.
Não sei se isso é cura.
Talvez seja só mudança.
Sei que ainda tem dias que tudo aperta.
Mas agora tem espaço.
A ausência da fumaça abriu clareiras dentro de mim.
Lugares onde cabem futuros sem nome,
mas que, por alguma razão, me esperam.
A vida parece mais longa agora.
Não mais fácil.
Mas mais viva.
E às vezes, isso basta.
Foi a água que levou.
Mas sou eu que fico.
Se você também guarda silêncios que não sabem o caminho de volta,
fica.
Talvez aqui a gente aprenda a respirar junto.